Cultura em alerta com a mudanças no sistema de incentivos, por Leonardo Antonelli

Por: Nelson Gobbi
Fonte: O Globo
A conta-gotas, o secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura,
André Porciuncula, vem anunciando em suas redes sociais possíveis
mudanças na Lei Rouanet, cujo regulamento já havia sofrido alterações via
portaria em julho do ano passado. Logo em 1º de janeiro foi proposta a
redução no teto dos projetos, que ficariam limitados a R$ 500 mil, ideia
defendida por Jair Bolsonaro em entrevista na qual alfinetou a cantora Ivete
Sangalo, insinuando que ela e outros artistas perderiam a “teta gorda”. A
medida teria como objetivo “descentralizar os recursos”, assim como a
proibição de que um projeto receba a renúncia fiscal de um mesmo
patrocinador por mais de dois anos, outra das sugestões.
Porciuncula disse ainda que quer reduzir o limite dos cachês de R$ 45 mil
para R$ 3 mil, proposta defendida nas redes pela antecessora de Mario Frias
na Secretaria Especial da Cultura, a atriz Regina Duarte. O secretário de
Fomento, que recebe R$ 16.944,90 mensais por seu cargo comissionado,
segundo o Portal da Transparência, justificou a redução por considerar “um
valor excelente para artistas em início de carreira”. Em outra postagem,
anunciou o limite de R$ 10 mil para o valor destinado a aluguéis de teatros.
Porciuncula também propôs que patrocinadores sejam obrigados a investir
10% a cada milhão “em imposto isentado” em projetos nunca apoiados, a
redução do limite das remunerações descritas pelos proponentes e a não
obrigatoriedade de custo destinado à assessoria jurídica.
Procurada, a Secretaria Especial da Cultura não respondeu, até a publicação
da reportagem, se foram realizados estudos para chegar aos limites
propostos para a Rouanet e se há previsão de quando as mudanças serão
implementadas.
O GLOBO apurou que as alterações podem ser incluídas em uma Instrução
Normativa (IN) criada para regulamentar as mudanças na lei feitas em 2021.
Diante das especulações, produtores temem que a produção cultural
através do uso da Rouanet se torne inviável, com mais entraves na relação
entre patrocinador e produtores.
— É tudo tão esdrúxulo, não acredito que vá prosperar. Já somos obrigados
a uma série de contrapartidas, como a meia-entrada, e ainda vamos ficar
mais limitados? — questiona o ator e diretor Odilon Wagner, membro da
Associação dos Produtores Teatrais Independentes (APTI). — O Brasil tem
uma infinidade de setores incentivados, com renúncias fiscais maiores, mas
por que a interferência é só na Cultura? Ou o governo também impõe regras
sobre como o agronegócio, a indústria automobilística ou a têxtil devem
investir?
Produtores ouvidos acreditam que os valores estipulados para cachês e
aluguel de teatro impossibilitariam as grandes produções e também não
seriam suficientes para impulsionar artistas e grupos iniciantes. No Rio, a
média do aluguel das salas de espetáculo vai de R$ 14 mil a R$ 18 mil,
variando o número de sessões. No Twitter, Porciuncula afirmou não ser
necessário gastar além de R$ 10 mil com teatros privados, com “tantos
teatros públicos por aí”.
— É, no mínimo, um total desconhecimento da realidade dos teatros no
país. Nem grandes centros como Rio e São Paulo têm espaços públicos com
estrutura para atender a toda produção teatral — sentencia o ator Miguel
Falabella, diretor de sucessos adaptados da Broadway como “O homem de
La Mancha” e “Annie”. — Numa comédia com elenco pequeno e um cenário
só, até dá para fazer com bilheteria, não precisa Rouanet. Mas com
montagens maiores e musicais, é impossível. A gente vai perdendo
cosmopolitismo, vai diminuindo como categoria, como geradores de
empregos.
Para advogados especializados no mercado cultural, as propostas erram ao
impelir a modalidade do mecenato (na qual empresas e pessoas físicas
podem doar até 4% e 6%, respectivamente, do imposto de renda para
apoiar a Cultura) a atender exclusivamente projetos de menor porte. Para
este fim, avaliam, o governo pode lançar mão do fomento direto via Fundo
Nacional de Cultura (FNC), também previsto como modalidade de incentivo
da Rouanet.
— Forçar patrocinadores a investir em produções menores vai contra o
interesse dos grandes players do mercado, que querem as marcas
associadas a projetos de maior repercussão e engajamento —observa
Leonardo Antonelli, advogado e mestre em Direito Tributário, para quem
as mudanças podem gerar insegurança jurídica.
Leonardo Antonelli também alerta para o fato de que “o modelo de
financiamento fica em xeque”:
— Isso atinge a todas as partes, não só produtores e patrocinadores, mas
aos artistas e, ao final, à sociedade, que ficará privada do acesso ao
entretenimento.
Artistas e grupos com projetos menores ou focados em pesquisa de
linguagem, que tradicionalmente têm mais dificuldade de acessar os
grandes patrocinadores, também acreditam que o fomento direto pode ser
um caminho melhor do que a desidratação da cadeia produtiva desde o
topo. É o caso do Grupo Carmin, de Natal (RN), que, mesmo tendo o
espetáculo “A invenção do Nordeste” consagrado por prêmios como o Shell
e o Cesgranrio, nunca teve um projeto contemplado pela Rouanet. Com
planos de trazer o espetáculo “Jacy” de volta ao Rio em abril, a companhia
potiguar tem concentrado seus esforços em leis de incentivo municipais e
estaduais.
— Todo esforço para desconcentrar recursos é louvável, mas precisa ser
feito ouvindo as necessidades da classe. Tivemos um grande impulso no
início da carreira quando “Jacy” ganhou o Myriam Muniz (prêmio de teatro
da Funarte). Editais e premiações do tipo são mais efetivos para o teatro
mais alternativo — destaca a atriz e diretora Quitéria Kelly, fundadora do
grupo. — Não é a limitação dos recursos de quem tem um grande público
que vai nos fazer chegar a um grande patrocinador. E, mesmo no caso dos
pequenos, é difícil planejar nesta base. Um cachê de R$ 3 mil seria pouco
mais do que a passagem que estamos orçando por ator para ir ao Rio em
abril.
No ano passado, a concentração de recursos da Rouanet acabou sendo
ampliada pela própria Secretaria da Cultura, com a redução no número de
projetos aprovados em 35%, segundo dados do Sistema de Apoio às Leis de
Incentivo à Cultura (Salic), enquanto a captação continuou a crescer,
chegando a R$ 1,9 bilhão em 2021. Também de acordo com o Salic, de 4.637
projetos em vigor no ano passado, apenas 611 captaram acima dos R$ 500
mil que o governo quer como novo teto, sem que o patamar da maioria
resultasse na descentralização dos recursos.
Tanto o gargalo no fluxo dos projetos quanto as frequentes mudanças no
financiamento à cultura também são vistas como cerceamento da
expressão artística e da liberdade de expressão. É o que aponta o
Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão (Mobile),
plataforma que mapeia tentativas de censura à cultura no país. Uma das
ações mais recentes da iniciativa foi a denúncia à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que
realizou uma audiência pública em dezembro, da qual Porciuncula
participou. Diretora regional da ONG internacional Artigo 19, uma das
entidades que integram o Mobile, a advogada Denise Dora diz que as
possíveis mudanças estão sendo acompanhadas e, se postas em prática,
podem resultar em novas ações.
— A censura hoje não é feita com a repressão do passado. Os governos
autoritários de agora têm métodos mais sofisticados, reproduzidos da
mesma forma em diferentes países. Eles agem em várias frentes, como o
desmonte das políticas públicas da cultura e o ataque à reputação da
comunidade artística, principalmente através das redes sociais — detalha
Denise. — No caso das leis de incentivo, a estratégia é criar vários entraves
administrativos, até destruir a cadeia produtiva.
Enquanto as mudanças não são publicadas, o setor espera o resultado da
ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) solicitada
pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) junto ao STF sobre atos e
omissões da gestão das políticas públicas do setor cultural. Em 17 de
dezembro, o ministro Edson Fachin intimou Jair Bolsonaro e Mario Frias a
darem explicações sobre questões relacionadas à Lei Rouanet e à Ancine
(Agência Nacional do Cinema). Com o recesso do Judiciário, o prazo do
governo vai até o início de fevereiro. Produtores esperam que o julgamento
permita a liberação, via liminar, dos projetos parados, e evite outras
alterações na lei.